quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

VÍTIMAS DA DITADURA 6 - SOBREVIVENTES

Fui preso às seis e meia da manhã de 29 de setembro de 1969. Na época eu trabalhava no Jornal da Tarde, de São Paulo, cobrindo a área policial e naquela noite ficara até as quatro da madrugada conversando e bebendo com dois policiais - o escrivão Waldemar de Paula e o delegado Luiz Orsatti, ambos lotados no DOPS.

Cheguei em casa, um apartamento de terceiro andar na esquina das avenidas São João e Duque de Caxias, às quatro e meia da manhã e, cansado e meio alto, fui me deitar no quarto do meu irmão Aton Fon Filho, que se encontrava viajando.

Dormi duas horas e acordei com algo frio encostado no nariz. Abri os olhos e o quarto estava cheio de homens armados de fuzis e metralhadoras. O objeto frio encostado no meu nariz era o cano de uma pistola calibre 45, empunhada pelo delegado Raul Nogueira - que eu já conhecia como integrante do grupo clandestino de extrema-direita Comando de Caça aos Comunistas, um policial que encontrava um estranho prazer em espancar estudantes.

Fui algemado, com as mãos à frente do corpo, e levado por dois policiais.

As mãos de Raul tremiam, não sei por que, mas na hora me pareceu medo. Ao nos aproximarmos do elevador, ele engatilhou a 45 e encostou-a na minha cabeça. Lembro perfeitamente de que senti medo - um arrepio que percorreu a espinha - e não reclamei porque um pensamento passou-me pela cabeça: "Diante de um covarde armado, o melhor é obedecer sem conversar". O outro policial também percebeu a situação. "Prá que isso, doutor?", ele chegou a perguntar. Raul Nogueira respondeu que "essa gente é muito perigosa, muito perigosa".

O carro estacionou no pátio dos fundos do 34° Distrito Policial e eu fui levado aos empurrões para a porta do pequeno prédio de três pavimentos onde funcionava a "Operação Bandeirantes". Eu ainda tinha alguma esperança de que aquela situação se esclarecesse rapidamente, mas ela se desvaneceu logo: "Esse é daqueles que não sabem de nada", explicou o delegado Raul "Careca" ao entregar-me a dois homens que esperavam na porta.

Fui levado para a câmara de torturas, no segundo andar, e durante três horas submetido a "pau-de-arara", espancamentos e choques elétricos. De tudo isto, lembro-me de que nada era mais terrível que os choques elétricos na cabeça, com um fio preso ao lóbulo da orelha e outro percorrendo os lábios, o pescoço ou o nariz. Esses
choques provocam uma contração tão forte dos músculos da face que a língua é mordida e estraçalhada pelos dentes. Fiquei vários dias sem poder comer, até que um enfermeiro do Exército obteve autorização para levar-me um pouco de gelo, que anestesiava momentaneamente a língua, permitindo que eu me alimentasse.

Fiquei 17 dias na "Operação Bandeirantes". A alimentação era levada do quartel da Polícia do Exército e servida uma vez por dia, à noite. Isto tem um motivo. Uma pessoa alimentada não pode ser pendurada no "pau-de-arara" ou submetida a choques elétricos, sob o risco de morrer de congestão. Então, nós éramos alimentados apenas à noite, para ficarmos disponíveis durante o dia para sermos torturados.

Lembro-me de que uma vez ganhei uma dúzia de pães do capitão Roberto ontuschka. Esse capitão Roberto era um homem estranho. Durante o dia, torturava-nos; à noite, descia aos xadrezes para distribuir bíblias e tentar salvar nossas almas. Uma noite, procuramos conversar com ele, pedindo-lhe que explicasse como podia um homem tão religioso torturar seus semelhantes. "Eu trago a palavra de Deus", ele explicou, "mas, para quem se recusa a ouvi-la, eu uso esta outra linguagem", disse,
apontando a pistola calibre 45 que trazia na cintura. Pedi-lhe pão e ele respondeu que só quando eu revelasse onde se encontrava meu irmão, a quem a "Operação Bandeirantes" procurava: "Acaso serei eu guardião do meu irmão?", respondi-lhe com as palavras do Gênese. Ele ficou muito satisfeito com a resposta e deu o pão.

Alguns de nós sequer sabiam por que estavam presos. Recordo de três casos extremos: Osvaldo, Pardal e um japonês. Pardal havia sido preso porque um de seus alunos, aborrecido com as notas baixas que recebia, o havia denunciado como comunista. O japonês fora preso na Faculdade de Economia da USP. Os homens da "Operação Bandeirantes" haviam tentado prender um grupo de estudantes, que fugiu. Só ficou na escola o japonesinho, que estava vendendo livros e não sabia o que acontecia.

O caso de Osvaldo talvez seja tragicômico. Ele embebedou-se em uma boate e foi preso. Acordou no xadrez da "Operação Bandeirantes" sem conseguir se lembrar por que fora preso. O agente que o detivera, provavelmente também bêbado, não conseguia lembrar-se por que o havia prendido. E durante um mês Osvaldo foi torturado para contar o motivo pelo qual havia ido parar na "Operação Bandeirantes".

Gasparzinho e o nissei Daniel haviam sido presos sob a acusação de envolvimento com o PC do B. Junto com eles havia sido detido um terceiro rapazinho. Os três eram quase meninos, nenhum chegara aos vinte anos. Na "Operação Bandeirantes", os policiais tentaram destruí-los moralmente, mandando que um torturasse o outro. Os três se recusaram e, por isso, foram condenados a ser torturados em conjunto. De volta à cela, os três, estropiados, contavam emocionados como haviam se sentido mais fortes para enfrentar o suplício vendo que o amigo se mantivera firme.

Depois de 17 dias na "Operação Bandeirantes", fui transferido para o DOPS. Onde fiquei vinte dias e só fui torturado mais uma vez - duas horas de "pau-de-arara" e choques elétricos, comandados pelo delegado Roberto Guimarães e pelo investigador Moretto. Esta sessão de torturas aconteceu na véspera de minha transferência para o Presídio Tiradentes e, devido ao "pau-de-arara", fiquei com as pernas paralisadas alguns dias.

Fiquei mais quinze dias no Presídio Tiradentes, até à noite do dia 19 de novembro, quando fui levado de volta para o DOPS. Naquela noite mesmo fui colocado em liberdade. E lembro-me, ainda, das palavras de despedida do delegado que me libertou: "Que bela reportagem, se você pudesse escrever, hein?"

Antonio Carlos Fon

Antonio Carlos Fon nasceu em Salvador, Bahia. Começou no jornalismo em 1967, no jornal O Dia, de São Paulo, como repórter-policial. Daí transferiu-se para o Diário Popular e, mais tarde, Jornal da Tarde, onde trabalhou durante seis anos, sempre cobrindo a área policial.
Em 1974 transferiu-se para a revista Visão onde, durante um ano, cobriu as áreas de economia e política. Fez parte do grupo que lançou, em 1975, o jornal Aqui São Paulo, antes de se transferir para Veja, onde voltou a se dedicar à reportagem policial.

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