domingo, 29 de abril de 2012

A CRUCIFICAÇÃO EM ATENAS

O homem que prenderam, interrogaram, torturaram, humilharam, escarneceram e crucificaram, na Palestina de há quase dois mil anos, foi, conforme os Evangelhos, um ativista revolucionário. Ele contestava a ordem dominante, ao anunciar a sua substituição pelo reino de Deus. O reino de Deus, em sua pregação, era o reino do amor, da solidariedade, da igualdade. Mas não hesitou em chicotear os mercadores do templo, que antecipavam, com seus lucros à sombra de Deus, o que iriam fazer, bem mais tarde, papas como Rodrigo Bórgia, Giullio della Rovere, Giovanni Médici, e cardeais como os dirigentes do Banco Ambrosiano, em tempos bem recentes.
... Ao longo da História, duas têm sido as imagens daquele rapaz de Nazaré. Uma é a do filho único de Deus, havido na concepção de uma jovem virgem, escolhida pelo Criador. Outra, a do homem comum, nascido como todos os outros seres humanos, em circunstâncias de tempo e lugar que o fizeram um pregador, continuador da missão de seu primo, João Batista, decapitado porque ameaçava o poder de Herodes Antipas. Tanto João, quanto Jesus, foram, como seriam, em qualquer tempo e lugar, inimigos da ordem que privilegiava os poderosos. Por isso – e não por outra razão – foram assassinados, decapitado um, crucificado o outro.

(...) O Reino de Deus, sendo o reino da justiça, é a libertação. Daí a associação entre essa felicidade e a vida eterna, presente em quase todas as religiões. Na pregação de Cristo, a libertação começa na Terra, na confraternização entre todos os homens. Daí o conselho aos que o quisessem seguir, e ainda válido – repartissem com os pobres os seus bens, como fizeram, em seguida, os seus apóstolos, ao criar a Igreja do Caminho. Se acreditamos na vida eterna, temos que admitir que a vida na Terra é uma parcela da Eternidade, que deve ser habitada com a consciência do Todo. Assim, a vida eterna começa na precariedade da carne.

Quarta-feira passada um grego, Dimitris Christoulas, chegou pela manhã à Praça Syntagma, diante do Parlamento Grego, buscou a sombra de um cipreste secular, levou o revólver à têmpora, e disparou. Em seu bilhete de suicida estava a razão: aos 77 anos, farmacêutico aposentado, teve a sua pensão reduzida em mais de 30%, ao mesmo tempo em que se elevou brutalmente o custo de vida. As medidas econômicas, ditadas pelo empregado do Goldman Sachs e servidor do Banco Central Europeu, nomeado pelos banqueiros primeiro ministro da Grécia, Lucas Papademos, não só reduziram o seu cheque de aposentado, como o privaram dos subsídios aos medicamentos. “ Quero morrer mantendo a minha dignidade, antes que me veja obrigado a buscar comida nos restos das latas de lixo” – escreveu em seu bilhete de despedida, lido e relido pelos que tentaram socorrê-lo, e que se reuniam na praça.

(...) No mesmo texto, Christoulas incita claramente os jovens gregos sem futuro à luta armada, a pendurar os traidores, na mesma praça Syntagma, “como os italianos fizeram com Mussolini em Milão, em 1945”. O tronco do cipreste se tornou painel dos protestos escritos. Em um deles, o suicídio de Christoulas é definido como um “crime financeiro”.


Nunca, em toda a História, tivemos tanto desdém pela vida dos homens, como nestes tempos de ditadura financeira universal.(...)

Ao expirar, depois de torturado, ultrajado seu corpo, humilhado, escarnecido, Cristo se tornou a maior referência de justiça. Aos 77 anos, o aposentado grego, ao matar-se, transformou-se em bandeira que ameaça iniciar, na Grécia, novo movimento em favor da igualdade – a mesma idéia que levou Péricles a fundar o primeiro estado de bem-estar social, ao reconstruir Atenas, empregar todos os pobres, e dotar os marinheiros do Pireu do pioneiro conjunto de casas populares da História.

Vinte séculos podem ter sido apenas rápido intervalo – um pequeno descanso da razão.

Santayana: a crucificação de Cristo e o suicídio em Atenas
por Mauro Santayana

quinta-feira, 26 de abril de 2012

COTAS E PRECONCEITOS

O Supremo Tribunal Federal julgará hoje a constitucionalidade das cotas para afrodescendentes e índios nas universidades públicas brasileiras.

No palpite de quem conhece a Corte, o resultado será de, pelo menos, sete votos a favor e quatro contra. Terminará assim um debate que durou mais de uma década e, como outros, do século 19, expôs a retórica de um pedaço do andar de cima que via na iniciativa o prelúdio do fim do mundo.

Em 1871, quando o Parlamento discutia a Lei do Ventre Livre, argumentou-se que libertando-se os filhos de escravos condenava-se as crianças ao desamparo e à mendicância. "Lei de Herodes", segundo o romancista José de Alencar.

Quatorze anos depois, tratava-se de libertar os sexagenários. Outro absurdo, pois significaria abandonar os idosos. Em 1888, veio a Abolição (a última de país americano independente), mas o medo a essa altura era menor, temendo-se apenas que os libertos caíssem na capoeira e na cachaça. Como dizia o Visconde de Sinimbu: "A escravidão é conveniente, mesmo em bem ao escravo".

A votação do projeto foi acelerada pelo clamor provocado pelo linchamento de um promotor que protegia negros fugidos no interior de São Paulo. Entre os assassinos, estava James Warne, vulgo "Boi", um fazendeiro americano que emigrara depois da derrota do Sul na Guerra da Secessão.

As cotas seriam coisa para inglês ver, "lumpenescas propostas de reserva de mercado". Estimulariam o ódio racial e baixariam a qualidade dos currículos das universidades. Como dissera o barão de Cotegipe, "brincam com fogo os tais negrófilos". Os cotistas seriam incapazes de acompanhar as aulas.

Passaram-se dez anos, pelo menos 40 universidades instituíram cotas para afrodescendentes e hoje há milhares de negros exercendo suas profissões graças à iniciativa.

O fim do mundo ficou para a próxima. Para quem acha que existe uma coisa como ditadura dos meios de comunicação, no século 21, como no 19, todos os grandes órgãos de imprensa posicionaram-se contra as cotas. Ressalve-se a liberdade assegurada aos articulistas que as defendiam.

Julgando a constitucionalidade das iniciativas das universidades públicas que instituíram as cotas, o Supremo tirará o último caroço da questão. No memorial que encaminharam na defesa do sistema, os advogados Márcio Thomaz Bastos, Luiz Armando Badin e Flávia Annenberg começaram pelos números: "Em 2008, os negros e pardos correspondiam a 50,6% da população e a 73,7% daqueles que são considerados pobres. (...) Em 1997, 9,6% dos brancos e 2,2% dos pretos e pardos de 25 ou mais idade tinham nível superior".

E concluíram: "A igualdade nunca foi dada em nossa história. Sempre foi uma conquista que exigiu imaginação, risco e, sobretudo, coragem. Hoje não é diferente".

O senador Demóstenes Torres, campeão do combate às cotas, chegou a lembrar que a escravidão era uma instituição africana, o que é verdade, mas não foram os africanos que impuseram a escravatura ao Brasil.

Nas suas palavras: "Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram..."

Hoje o Supremo virará a última página da questão. Ninguém se lembra de James Barne, mas Demóstenes será lembrado por outras coisas.

Elio Gaspari
Historiador


segunda-feira, 23 de abril de 2012

CPI DA VEJA

Recheada de anúncios, a última edição da Veja esmera-se em representar à perfeição a mídia nativa. A publicidade premia o mau jornalismo. Mais do que qualquer órgão da imprensa, a semanal da Editora Abril exprime os humores do patronato midiático em relação à CPI do Cachoeira e se entrega à sumária condenação de um réu ainda não julgado, o chamado mensalão, apresentado como “o maior escândalo de corrupção da história do País”.

(...) Segundo a mídia, a CPI destina-se a desviar a atenção da opinião pública do derradeiro e decisivo capítulo do processo chamado mensalão. Com isso, a CPI pretenderia esconder a gravidade do escândalo a ser julgado pelo Supremo.

O caso revelado pelo vazamento dos inquéritos policiais que levaram à prisão do bicheiro Cachoeira existe. Pode-se questionar o fato de que o vazamento se tenha dado neste exato instante, mas nada ali é invenção. Inclusive, a peculiar, profunda ligação do jornalista Policarpo Junior, diretor da sucursal de Veja em Brasília, com o infrator enfim preso.
(...)

Não faltam, nesta área, os alquimistas, treinados com requinte para cumprir a vontade do patrão. Jograis inventores. Um deles sustenta impávido que a presidenta Dilma despenca em São Paulo para recomendar a Lula toda a cautela em apoiar a CPI do Cachoeira, caldeirão ao fogo, do qual respingos candentes poderão atingir o PT. É possível. E daí? Certo é que a recomendação não houve. E que o Partido dos Trabalhadores escala, no topo da pirâmide, um presidente, Rui Falcão, tão pateticamente desastrado ao rolar a bola na boca da pequena área para o chute midiático. Disse ele que a CPI vinha para “expor a farsa do mensalão”.
De graça, ofertou a deixa preciosa aos inimigos. Só faltava essa…

De todo modo, o mensalão. Se o inquérito policial falou claro a respeito de Cachoeira e companhia, o mensalão ainda não foi provado. É este um velho argumento de Carta Capital, pisado e repisado. É inaceitável, em tese, antecipar-se ao julgamento, mesmo que no caso haja razoável clareza para admitir outros crimes, como uso de caixa 2 e lavagem de dinheiro. Não há provas, contudo, de um pagamento mensal, mesada pontual a irrigar o Congresso. A sentença compete ao Supremo, e a presença de Ayres Brito na presidência do tribunal representa uma garantia. O mesmo Ayres Brito que não aceita declarar mensalão enquanto carece de provas.

Sobra a CPI do Cachoeira. Veremos o que veremos. Resta, de minha parte, a convicção de que poderia tornar-se o inquérito da mídia nativa. Outros são os jornalistas (jornalistas?) envolvidos, além de Policarpo Junior, de sorte a configurar a chance de naufrágio corporativo. Entendam bem, evito ilusões. Não creio, infelizmente, que o Brasil esteja maduro para certos exames de consciência entre o fígado e a alma.

Casa-grande e senzala continuam de pé e, por ora, falta quem se atire à demolição. No fundo, os graúdos sempre anseiam aparecer no Jornal Nacional e nas páginas amarelas de Veja. Um convescote promovido por João Dória Jr., de próxima realização, conta com a presença de 14 governadores. Nem ouso me referir ao ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, advogado de Cachoeira. O qual, obviamente, está em ótimas mãos. Igual a Daniel Dantas.

Resta algo mais, merecedor de destaque e, suponho em vão, da atenção da mídia nativa. Passou oito anos a agredir o presidente Lula e o agredido contumaz deixou o governo com quase 90% de aprovação. A presidenta Dilma, embora ex-guerrilheira não é ex-metalúrgica, e tem merecido alguma condescendente compreensão. Mesmo assim, se houver oportunidade, não será poupada. Por enquanto, cuida-se, de quando em quando, de colocar pedras em seu caminho. Não são o bastante, ela cresce inexoravelmente em popularidade. Não me arrisco a crer que os alicerces da senzala comecem a ser abalados, já me enganei demais ao longo da vida. Por parte da mídia, não valeria, porém, analisar os fatos com um mínimo de realismo?

Mino Carta
sábado, 21 de abril de 2012

quinta-feira, 19 de abril de 2012

TORTURADO ATÉ A MORTE


Os fatos a seguir narrados são verdadeiros embora não comprovados historicamente, visto seus responsáveis terem escondido ou destruído todas as provas.

“Ele foi preso pelas forças da repressão ao entardecer de quinta-feira depois da última reunião de seu pequeno grupo.

Não houve reação. Absolutamente nenhum confronto com os homens que vieram prendê-lo.

Como de costume, não havia mandato judicial, nem uma acusação formal que justificasse a prisão.

Foi levado diretamente para a sala de torturas onde passou a ser interrogado da forma mais desumana que alguém pode conceber.

Levou tapa na cara, pontapés, socos, pauladas. Foi chicoteado por horas.

Ficou praticamente desfigurado de tantas agressões.

Enquanto apanhava ouvia as acusações desconexas. Era questionado de forma vaga e confusa e ameaçado o tempo todo.

O chefe do aparato policial era um homem inseguro que buscava demonstrar humanidade e que apenas cumpria ordens, embora, as cumprisse com requinte.

No outro dia o martírio continuou.

Além das torturas físicas havia as torturas psicológicas.

Diziam que matariam seus amigos, seus irmãos. Diziam que o matariam na frente de sua mãe e ele sofreria demais por isso se ele não falasse.

Mas, ele não tinha o que falar.

Não tinha segredos para negociar. Não sabia de conspirações como eles insistiam em indagar. Nem mesmo participara de nada que visasse atingir o poder.

Nada.

E dessa forma, sem negociações e sem piedade ele foi torturado por quase 24 horas vindo a falecer em algum momento da sexta-feira seguinte à sua prisão”.

Este absurdo tão atual, foi cometido há mais de 2 mil anos.

O nome de mais essa vítima da violência é Jesus Cristo. O grande líder de todos os torturados do mundo.

Aquele aquém, com certeza, a maioria dos mortos e desaparecidos do Brasil, devem ter lançado uma oração de socorro, cada um a seu jeito, em seu último suspiro.

Preso pelo aparato repressivo da arrogância, do poder e da ordem. Mantido em cativeiro, torturado até a morte.

As marchas com Deus e pela pátria foram conduzidas pelos conservadores da época, que exigiam que Herodes detivesse o perigo subversivo. Temiam perder algum quinhão de seu prestígio e poder.

E a mensagem daquele homem era mesmo subversiva ao sistema, pois, falava em igualdade e justiça.

O golpe se deu, mas, como toda ditadura se esfacelou com o tempo como um castelo de cartas enquanto a mensagem de Jesus, seu apelo ao respeito aos pequenos e desprotegidos, sua exortação a uma vida de paz e de amor, entretanto, ainda ecoa da montanha de onde um dia ele disse aparentes incoerências do tipo - bem aventurados os perseguidos; Bem aventurados os que sofrem; Bem aventurados os humilhados.

Nesse mês de comemorações de Páscoa seria correto lembrar de Jesus como um desses sonhadores, anarquistas e idealistas enlouquecidos capazes de morrer sob tortura na luta pela liberdade no Brasil e no mundo.



Prof. Péricles

terça-feira, 17 de abril de 2012

A DERROCADA DO GRUPO ABRIL

Na década de 90, dois grupos empresarias brasileiros despontavam entre os principais grupos de mídia da América Latina. Depois da Globo, o outro grupo brasileiro era a Abril.

Desde então, a Abril Mídia é uma coleção de fechamentos e venda de empresas ou participações acionárias. A Abril fechou a gravadora Abril Music, o site Usina do Som e os canais de TV paga Fiz TV e Idea TV. Vendeu sua participação na HBO Brasil, na DirecTV Latin America, na ESPN Brasil, no Eurochannel, na TVA MMDS, na TVA Cabo e no UOL, entre outras.

Hoje a Abril se resume basicamente à editora e sua gráfica, à DGB (holding de distribuição e logística que é um verdadeiro monopólio nas bancas de jornais), à Elemídia (que instala monitores informativos em hotéis, elevadores, aeroportos, etc) e ao canal de TV paga MTV Brasil. Além dos sites de cada um destes veículos. Um grupo de mídia pequeno para o cenário de convergência que vivemos.

Cabe registrar que a MTV Brasil (que licencia a marca da Viacom) vive às voltas com o fantasma dos cortes de gastos e demissão de pessoal. Sua duração no longo prazo é constantemente posta em dúvida.

Para piorar, os Civita venderam 30% da Abril (o limite permitido pela Constituição Federal) aos sul-africanos do Naspers (donos, no Brasil, do site Buscapé). O Naspers, quando se chamava Die Nasionale Pers, foi o órgão de imprensa oficioso do povo africâner e porta-voz do apartheid. Pieter Botha e Frederik de Klerk foram membros do board do Naspers.

Ou seja, a Abril vive hoje do prestígio da revista Veja. Sem ela, os Civita já teriam virado empresários de porte médio do setor de comunicações, irrelevantes para o futuro do setor no Brasil.

E, segundo denúncias de Luis Nassif, sabedores dessa situação, os Civita tratam de inflar de todos os modos as vendas da Veja, inclusive com uma ajuda substancial do governo de São Paulo, que adquire milhares de assinaturas.

Cada vez mais fracos, mais temerosos do futuro, a tendência é que elevem o tom de voz na crítica a qualquer regulação das comunicações no Brasil. E se aproveitem da falta de vontade política do governo para enfrentar o tema e blefem com um poder político que, se um dia o tiveram, hoje com certeza já se esvaiu quase todo.

PS: como não são bobos e sabem que seu horizonte se estreita, os Civita resolveram colocar os ovos em outro cesto e passaram a investir em educação, criando uma outra empresa, sem relações com a Abril Mídia, chamada Abril Educação. Quando a Veja for de vez para as calendas, é de educação privada que eles irão viver.

Luis Nassif/a-derrocada-do-grupo-abril

domingo, 15 de abril de 2012

O PAPA E O MARXISMO

O papa Bento XVI tem razão: o marxismo não é mais útil. Sim, o marxismo conforme muitos na Igreja Católica o entendem: uma ideologia ateísta, que justificou os crimes de Stalin e as barbaridades da revolução cultural chinesa.

Aceitar que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é o mesmo marxismo conforme a ótica de Marx seria como identificar catolicismo com Inquisição. Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo não é mais útil. Porque já não se justifica enviar mulheres tidas como bruxas à fogueira nem torturar suspeitos de heresia.

Ora, felizmente o catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem com a pedofilia de padres e bispos.

Do mesmo modo, o marxismo não se confunde com os marxistas que o utilizaram para disseminar o medo, o terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber o que é marxismo; assim como há que retornar aos Evangelhos e a Jesus para saber o que é cristianismo, e a Francisco de Assis para saber o que é catolicismo.

Ao longo da história, em nome das mais belas palavras foram cometidos os mais horrendos crimes. Em nome da democracia, os EUA se apoderaram de Porto Rico e da base cubana de Guantánamo. Em nome do progresso, países da Europa Ocidental colonizaram povos africanos e deixaram ali um rastro de miséria. Em nome da liberdade, a rainha Vitória, do Reino Unido, promoveu na China a devastadora Guerra do Ópio. Em nome da paz, a Casa Branca cometeu o mais ousado e genocida ato terrorista de toda a história: as bombas atômicas sobre as populações de Hiroshima e Nagasaki. Em nome da liberdade, os EUA implantaram, em quase toda a América Latina, ditaduras sanguinárias ao longo de três décadas (1960-1980).

O marxismo é um método de análise da realidade. E, mais do que nunca, útil para se compreender a atual crise do capitalismo. O capitalismo, sim, já não é útil, pois promoveu a mais acentuada desigualdade social entre a população do mundo; apoderou-se de riquezas naturais de outros povos; desenvolveu sua face imperialista e monopolista; centrou o equilíbrio do mundo em arsenais nucleares; e disseminou a ideologia neoliberal, que reduz o ser humano a mero consumista submisso aos encantos da mercadoria.

Hoje, o capitalismo é hegemônico no mundo. E de 7 bilhões de pessoas que habitam o planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, e 1,2 bilhão padecem fome crônica. O capitalismo fracassou para 2/3 da humanidade que não têm acesso a uma vida digna. Onde o cristianismo e o marxismo falam em solidariedade, o capitalismo introduziu a competição; onde falam em cooperação, ele introduziu a concorrência; onde falam em respeito à soberania dos povos, ele introduziu a globocolonização.

A religião não é um método de análise da realidade. O marxismo não é uma religião. A luz que a fé projeta sobre a realidade é, queira ou não o Vaticano, sempre mediatizada por uma ideologia.

A ideologia neoliberal, que identifica capitalismo e democracia, hoje impera na consciência de muitos cristãos e os impede de perceber que o capitalismo é intrinsecamente perverso.

A Igreja Católica, muitas vezes, é conivente com o capitalismo porque este a cobre de privilégios e lhe franqueia uma liberdade que é negada, pela pobreza, a milhões de seres humanos.

Ora, já está provado que o capitalismo não assegura um futuro digno para a humanidade. Bento XVI o admitiu ao afirmar que devemos buscar novos modelos. O marxismo, ao analisar as contradições e insuficiências do capitalismo, nos abre uma porta de esperança a uma sociedade que os católicos, na celebração eucarística, caracterizam como o mundo em que todos haverão de "partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho humano". A isso Marx chamou de socialismo.

O arcebispo católico de Munique, Reinhard Marx lançou, em 2011, um livro intitulado O Capital – um legado a favor da humanidade. A capa contém as mesmas cores e fontes gráficas da primeira edição de O Capital, de Karl Marx, publicada em Hamburgo, em 1867."Marx não está morto e é preciso levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. "Há que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no século 20".

O autor do novo O Capital, nomeado cardeal por Bento XVI em novembro de 2010, qualifica de "sociais-éticos" os princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal, qualifica a especulação de "selvagem" e "pecado", e advoga que a economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem econômica e política."As regras do jogo devem ter qualidade ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao capitalismo", afirma o arcebispo.

O livro se inicia com uma carta de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de "querido homônimo", falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o autor do Manifesto Comunista se encontra entre os que, do outro lado da vida, desfrutam da visão beatífica de Deus.


Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
[Escritor, autor do romance Um homem chamado Jesus (Rocco), entre outros livros -

quinta-feira, 12 de abril de 2012

CONSERVADORES NUNCA MUDAM

Quando se é jovem, mulher bonita é mulher gostosa. Não há como separar beleza da atração ao sexo, então, nosso (nós homens) conceito de beleza está atrelado às possibilidades de prazer que o alvo de nossa admiração promete.

Quando amadurecemos, mulher bonita é muito mais que isso. É mulher serena, sábia e piedosa para com nossas inconstâncias.

Aprendemos com o tempo a separar sexo de beleza, sabedoria de fanfarronice, serenidade de apatia.

Quando somos jovens, liberdade é tudo aquilo que nos permite extrapolar nossa energia. É todos ser, ambiente e situação que nos permite liberar. Qualquer ato, o resmungo da mãe, a advertência da professora, o não da namorada, qualquer coisa que nos limite é visto como inibidor do sagrado direito à liberdade.

O tempo nos ensina, que a liberdade implica no respeito à liberdade alheia e que liberdade não é libertinagem e ainda que éramos libertinos e não libertos.

Quando jovens a crítica é sempre pessoal, burra (da parte do crítico) e injusta.

Quando “crescemos” aprendemos a tirar da crítica tudo o que ela pode conter para nossa melhora, para nosso auto-julgamento.

O tempo é o senhor da razão, diziam nossas avós. E pra variar, elas estavam certas.

O amadurecimento é capaz de transformas água em estalactite, montanha em planície e idéias em projetos.

Por isso é importante amadurecer. Por isso não é feio nem sinal de fraqueza mudar uma opinião ou rever um conceito.

Não é o que acontece com os conservadores.

Os conservadores são pessoas que se embrutecem dentro de suas certezas.

Os Conservadores não são, necessariamente, mais velhos, pois muitos jovens são mais conservadores do que o Papa.

Apegados às suas certezas possuem a falsa sensação de ter a verdade absoluta sobre os fatos e se os fatos se alteram tornam-se cegos à mudança temendo perder o controle que julgavam ter sobre os mesmo.

Olham as coisas apenas do mesmo ângulo, ou seja, de um único ponto de vista.

Revolução, apenas a palavra já provoca ojerizas.

Esquerdista é comunista. Jovem fora do padrão é maconheiro, e maconheiro é bandido.
Elite é elite, classe média é fechada e povo é uma invenção dos comunistas.

Esses professorezinhos de história, esses padrecos envolvidos em causas sociais, esses são os culpados pela corrupção, pelas dificuldades, por tudo que lhe foge da zona de conforto.


Nunca tiveram nem jamais terão uma propriedade rural, mas defendem o latifúndio e odeiam o MST mais do que os próprios coronéis. São eles, e não os latifundiários, os maiores inimigos da reforma agrária.

Nunca votaram, nem em seus piores pesadelos em qualquer partido de esquerda, mas, muitas vezes, para dar ares de veracidade aos seus argumentos afirmam que “eu já votei no PT” ou “eu fui simpatizante do socialismo” coisa que, ele sabe, jamais poderá ser comprovada.

O conservador teme estar errado. Ele não quer ouvir argumentos porque se for convencido de um erro isso representaria que a vida inteira ele esteve errado sobre algo e isso é impossível.

Os conservadores fazem parte de nossa paisagem política. Compõem o eleitorado que disputamos. Os conservadores não podem ser diminuídos, subestimados ou esquecidos.

Na verdade, o melhor que se faz é ter vivo que foram eles que apoiaram Jânio e a vassoura moralista. Foram os conservadores que organizaram a Marcha com Deus pela Liberdade e foram eles que clamaram, exigiram, imploraram pelo golpe militar de 1964.

Esquecê-los? Jamais.

Buscar sempre o debate..

Assim como na ficção o vampiro teme o crucifixo, os conservadores temem um bom argumento que lhes abale as carcomidas estruturas de convicções e preconceitos que construíram para se justificar a vida toda.



Prof. Péricles

terça-feira, 10 de abril de 2012

ENRUSTIDOS

Se ainda houvesse necessidade, o caso do Senador e da Cachoeira seria uma saborosa lição.

Paladino do bem, campeão da moral, carrasco dos corruptos sempre mostrado pela mídia com o dedo em riste exigindo demissões, cpis e compostura, o senador foi envolvido numa investigação da Polícia Federal, autorizada pela justiça, que trás de forma clara e sem dúvidas, provas de seu envolvimento até a raiz dos cabelos, em inescrupulosas negociatas.

Se ainda fosse preciso, seria o momento da sociedade brasileira, aquela parcela bem intencionada que sonho com uma vida melhor para os brasileiros, mas que é facilmente levada pelas ondas da emoção plantadas pela mídia e pelos setores mais conservadores, entender, que não existem heróis acima do bem e do mal, nesse jogo sujo que, infelizmente, faz parte da rotina política de nosso país.

Não existem mágicos, não existem santos.

O Senador é mais um exemplo da coisa mais podre do jogo do poder, aquele corrupto até a alma que usa o discurso da anticorrupção para iludir os outros.

Ele não é o primeiro. Houve muitos outros.

Houve um candidato despreparado, mas que foi eleito presidente, sem propostas e sem planos, apenas defendendo acabar com a corrupção, varrer a corrupção do Brasil, tornando-se a vassoura seu símbolo.

Teve aquele outro, mais despreparado ainda que foi eleito pela mídia com um discurso vazio e sem sentido, mas prometendo “caçar os marajás”.

E ele não será o último, pois o discurso moralista sempre é fácil e sempre seduz os incautos. Ele não será o último enquanto partidos sem propostas e sem conteúdo continuarem se apossando da “corrupção dos outros” enquanto escamoteia a sua própria.

A corrupção no Brasil e no mundo é intrínseca ao exercício da administração da coisa pública que envolve muito dinheiro, interesses, burocracia e pessoas.

Existe, claro, formas de combatê-la, de maneira honesta e sem partidarização.

Uma delas, talvez a mais urgente, é acabar definitivamente com qualquer forma de contribuição nas campanhas eleitorais.

É nesse momento, quando pessoas físicas e empresas contribuem, que nascem os acordos futuros, as negociatas. Ou você acha que a contribuição se dá por amor ou ideal?

Deveríamos criar no Brasil uma legislação parecida com a do Reino Unido, onde verba de campanha é pública e dividida de igual maneira entre os partidos. Qualquer outro centavo, além disso, é crime eleitoral.

Com atos realistas e objetivos só dessa forma poderemos combater essa moléstia moral e financeira.

O resto é discurso vazio. Falso moralismo. Hipocrisia.

Como o enrustido homofóbico que agride os homossexuais, continuarão existindo os enrustidos moralistas que agridem nossa inteligência.



Prof. Péricles

domingo, 8 de abril de 2012

AVALIAÇÃO DO GOVERNO DILMA

A presidenta Dilma Rousseff bateu um novo recorde desde o início do seu mandato e ampliou a sua popularidade mesmo depois da divulgação de um crescimento modesto do PIB (Produto Interno Bruto) em 2011 e em meio a turbulências de uma crise política em sua base de apoio no Congresso.


Segundo pesquisa CNI/Ibope divulgada nesta quarta-feira (4), a aprovação pessoal da presidenta (aqueles que acham o jeito Dilma de governar "ótimo" ou "bom") subiu cinco pontos percentuais desde dezembro, de 72% para 77%. É o maior índice registrado desde março do ano passado, quando a primeira pesquisa sobre seu governo foi divulgada.


A presidenta tem usado como trunfo em sua relação com o Congresso as altas taxas de popularidade alcançadas desde o início de seu governo.


A avaliação de sua gestão, contudo, manteve-se a mesma na comparação com dezembro, estacionada em 56%. O índice tinha sido o melhor para um primeiro ano de governo desde que a pesquisa da Confederação Nacional da Indústria começou a ser feita, em 1995.


Comparativamente, o governo Luiz Inácio Lula da Silva tinha avaliação "ótima" ou "boa" de 34% no início de seu segundo ano de mandato, em 2004. Na época, o governo estava abalado pelo seu primeiro escândalo de corrupção, após a revelação do caso Waldomiro Diniz, ex-assessor da Casa Civil.


Ainda assim, é maior o número de entrevistados que considera o governo Dilma pior do que o governo Lula (23%). A gestão Dilma é considerada superior por 15%.


LEMBRANÇAS

A pesquisa aponta que os assuntos mais espinhosos, e que poderiam abalar a avaliação positiva do governo, foram pouco lembrados pelos entrevistados. É o caso do crescimento do PIB de 2,7% em 2011, citado por apenas 1%. A crise política, que levou à troca da liderança do governo no Senado, foi citado por 4%.


De acordo com o levantamento, os assuntos mais lembrados espontaneamente pelos entrevistados sobre o governo foram os "programas sociais voltados para mulheres" e as "viagens da presidente Dilma".


A pouco mais de dois meses da Conferência Rio +20 e com a votação do novo código florestal voltando à pauta do Congresso, a pesquisa apontou que as ações e políticas para o meio ambiente foram aquelas que apresentaram maior crescimento na aprovação em relação a dezembro, saltando de 48% para 53%.


As áreas com pior avaliação são, de acordo com a pesquisa, impostos (65% de desaprovação), saúde (63%) e segurança pública (61%).


A pesquisa foi realizada entre os dias 16 e 19 de março. No levantamento, foram ouvidas 2.002 pessoas em 142 municípios.


De: http://www1.folha.uol.com.br
Folha.com - Breno Costa
04/04/2012

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A GRUTA DA LOBA

Os próprios romanos contavam como tinha sido fundada a cidade.

Segundo eles, Marte, o deus da Guerra apaixonara-se e engravidara uma vestal (sacerdotisa de Vesta). Como castigo foi determinado por Júpiter que o fruto desse pecado (as Vestais juravam castidade) deveria ser morto ao nascer. Na verdade, não nasceu um baby, mas dois, gêmeos, a quem foram dados os nomes de Rômulo e Remo.

Abandonados em um cesto nas águas do Rio Tibre, eles foram salvos por uma loba (de verdade, de quatro patas e tudo), que os amamentou e os viu crescer. Adultos, Remo desapareceu misteriosamente durante uma tempestade (levado por seu pai? Morto por seu irmão?) enquuanto Rômulo acabaria fundando uma pequena aldeia, que um dia, conquistaria o mundo, Roma, oito séculos antes de Cristo.

Segundo os historiadores Dionísio e Plutarco, os romanos apontavam uma gruta, próxima ao monte Palatino (uma das sete colinas de Roma) na qual os irmãos foram aleitados pela loba. Ainda segundo esses historiadores clássicos, os romanos transformaram a gruta numa espécie de templo onde todos os anos, no mês de fevereiro realizavam ritual em homenagem a Luperco (entidade da natureza e dos ventos, tipo Pã, entre os gregos) que garantia colheita farta e ajudava a mulherada a arranjar marido e ter filhos.

No início do século XX o arqueólogo italiano Rodolfo Lanciani, pesquisando textos antigos, concluiu que a gruta da Loba mãe se localizaria realmente próxima ao Palatino e sob as ruínas do palácio construído por Otávio Augusto, o primeiro imperador romano. Cavou, escavou, procurou feito doido, mas nada encontrou.

Entretanto, há dois anos, arqueólogos passaram a explorar o local com sondas subterrâneas. Em julho, um dos aparelhos detectou um espaço vazio, a 16 metros de profundidade. Era uma câmara circular, com 7 metros de altura e 6,5 de diâmetro, coberta por uma cúpula. Uma filmadora controlada a distância revelou os deslumbrantes mosaicos que cobrem o teto e as paredes, feitos de mármore e conchas. Estudos indicam que essa é mesmo a gruta reverenciada pelos antigos romanos como o local onde vivia a loba que salvou Rômulo e Remo.

Como se vê, Roma ainda é capaz de surpreender o mundo.

Resta agora às meninas interessadas em arranjar marido e ter bons filhos conhecer a cidade eterna, e claro, em breve, dar uma passadinha na gruta da Loba para pedir uma ajudinha de Luperco.


Prof. Péricles

terça-feira, 3 de abril de 2012

CULPA DO LULA

Diálogo urbano, no meio de um engarrafamento. Carro a carro.

- É nisso que deu oito anos de governo Lula. Este caos. Todo o mundo com carro, e todos os carros na rua ao mesmo tempo. Não tem mais hora de pique, agora é pique o dia inteiro. Foram criar a tal nova classe média e o resultado está aí: ninguém consegue mais se mexer. E não é só o trânsito. As lojas estão cheias. Há filas para comprar em toda parte. E vá tentar viajar de avião. Até para o exterior - tudo lotado. Um inferno. Será que não previram isto? Será que ninguém se deu conta dos efeitos que uma distribuição de renda irresponsável teria sobre a população e a economia? Que botar dinheiro na mão das pessoas só criaria esta confusão? Razão tinha quem dizia que um governo do PT seria um desastre, que era melhor emigrar. Quem pode viver em meio a uma euforia assim? E o pior: a nova classe média não sabe consumir. Não está acostumada a comprar certas coisas. Já vi gente apertando secador de cabelo e lepitopi como e fosse manga na feira. É constrangedor. E as ruas estão cheias de motoristas novatos com seu primeiro carro, com acesso ao seu primeiro acelerador e ao seu primeiro delírio de velocidade. O perigo só não é maior porque o trânsito não anda. É por isso que eu sou contra o Lula, contra o que ele e o PT fizeram com este país. Viver no Brasil ficou insuportável.

- A nova classe média nos descaracterizou?

- Exatamente. Nós não éramos assim. Nós nunca fomos assim. Lula acabou com o que tínhamos de mais nosso, que era a pirâmide social. Uma coisa antiga, sólida, estruturada...

- Buuu para o Lula, então?

- Buuu para o Lula!

- E buuu para o Fernando Henrique.

- Buuu para o... Como, "buuu para o Fernando Henrique"?!

- Não é o que estão dizendo? Que tudo que está aí começou com o Fernando Henrique? Que só o que o Lula fez foi continuar o que já tinha sido começado? Que o governo Lula foi irrelevante?

- Sim. Não. Quer dizer...

- Se você concorda que o governo Lula foi apenas o governo Fernando Henrique de barba, está dizendo que o verdadeiro culpado do caos é o Fernando Henrique.

- Claro que não. Se o responsável fosse o Fernando Henrique eu não chamaria de caos, nem seria contra.

- Por quê?

- Porque um é um e o outro é outro, e eu prefiro o outro.

- Então você não acha que Lula foi irrelevante e só continuou o que o Fernando Henrique começou, como dizem os que defendem o Fernando Henrique?

- Acho, mas...

Nesse momento o trânsito começou a andar e o diálogo acabou.


Luis Fernando Verissimo
“O Estado de S.Paulo”

domingo, 1 de abril de 2012

CORRIDA DE BASTÃO


Garganta seca, árida como o sertão nordestino.

Camisa encharcada, grudada ao corpo.

Corpo repleto de dor.

Doem as pernas com mais nitidez, mais outras dores se misturam pelo tórax, braços, cabeça de um jeito que já não sabe onde a dor começa e onde ela termina.

A sede aperta. A garganta fica mais árida.

Ah como seria bom um descanso sob uma plácida sombra que protegesse desse sol abrasador!

Já na segunda metade da curva sente que o adversário dispara mais a frente.

É cruel correr contra quem tem tantas reservas e proteções...

Mas, a partir de um certo ponto, quase ao final da curva, já pode ver a figura lépida de seu parceiro de corrida.

Posicionado, mão estendida para trás, ansiosamente aguarda inquieto a sua vez.

Oh senhor! Finalmente. Minha hora de passar esse bastão que pesa mais que uma montanha.

Acelera os passos antes trôpegos, mas agora renovados. E voa na pista. Vôa como voaram um dia seus sonhos mais juvenis.

A mão estendida do companheiro aguarda para revezamento do bastão. Mal se contem.

Não há mais calor, não há mais sede, não há dor que seja maior que a felicidade de passar o bastão.

E quando estende o braço e sente que a mão segura à frente se apossa do objeto, ele desacelera as pernas, mas não desacelera o coração.

Corpo curvado com as mãos nos joelhos, mal consegue respirar. O que será que lhe tira mais o ar? O longo trajeto percorrido ou a emoção da missão cumprida?

Não poderia morrer jamais, sem cumprir o seu destino.

E seu destino se completava apenas com a passagem do bastão para outra mão amiga.

Seus olhos estão úmidos, mas não é mais de esgotamento ou fadiga, é de alegria e prazer de ter feito a coisa certa.

Então, senta na pista e fecha os olhos. As recordações do percurso cumprido ainda machucam. Ouve as vozes dos que vieram antes e já se calaram. Talvez seja hora de adormecer, mas de um adormecer repleto de esperança no resultado final dessa corrida, aonde com certeza, a vitória do mais justo chegará.

Essa semana o Brasil assistiu a estréia pública de um movimento que, nascido no Rio Grande do Sul, já se articulava por todo o Brasil a mais ou menos quatro anos.

Trata-se do “Levante Popular da Juventude”, movimento apartidário, composto majoritariamente por jovens estudantes brasileiros que querem que lhes seja contado direito à história do golpe de 64 e de sua ditadura.

Sabem esses moços, que outros moços como eles, foram mortos, muitos sob a tutela do estado, em meio a dilacerantes torturas.

Estão conscientes que muitas torturas ainda exercem seu nefasto poder na memória, nos traumas, nas fobias de homens e mulheres, marcados, presos, violentados, mutilados em porões imundos e clandestinos.

Sabem eles que muitas famílias ainda não puderam enterrar seus mortos, pois seus corpos permanecem desaparecidos e insepultos.

E também sabem que, se nada for feito, outros golpes como o de 64 e outras ditaduras ainda virão, podendo ser eles mesmos as próximas vítimas.

Esses jovens querem que os torturados, fartamente conhecidos sejam colocados no seu lugar de direito da história: o banco dos réus.

Para pelo menos quatro gerações de brasileiros o nascimento desse movimento de jovens, é muito mais do que apenas uma boa notícia. Para muitos veteranos de guerra o sentimento é de passagem do bastão.

A geração democrática mais nova está assumindo seu posto na luta pela democracia.

Há no ar, um sentimento de fim de jornada, que antes de ser triste, é de natural alegria.

Finalmente podem descansar os fatigados corredores, pois só poderiam descansar se houvesse convicção de que não seriam dos tiranos as últimas palavras ditas sobre tudo o que aconteceu.


Prof. Péricles
Para saber mais sobre o movimento, acesse www.levante.org.br