terça-feira, 29 de maio de 2012

O POEMA DE TERROR DE SOLEDAD



José Anselmo dos Santos foi figura destacada nos momentos mais dramáticos que levaram ao Golpe militar de 1964. Conhecido como “Cabo Anselmo” proferiu discursos e dirigiu o movimento de revolta dos marinheiros, usado, largamente pelos defensores da necessidade do golpe como, clara demonstração de quebra de hierarquia. Foi preso logo depois do 31 de março. Fugiu. Reapareceu em Cuba, e retornou clandestinamente ao Brasil em 1971.

Em Cuba conheceu uma revolucionária romântica, a paraguaia Soledad Barrett Viedma, capaz de escrever poemas de amor e de justiça naqueles tempos de horror. Soledad envolveu-se emocionalmente com ele e,ficou grávida do Cabo Anselmo, sendo sua companheira na clandestinidade.

O que Soledade e ninguém das organizações clandestinas sabia, é que “Cabo Anselmo” trabalhava para a repressão. Segundo ele, a partir de 1971 passou a ser informante ligado ao famigerado policial-assassino Sérgio Paranhos Fleury, por motivação ideológica (teria se desiludido com a revolução cubana). Para muitos, já seria um elemento pago e mantido pelo regime, desde 1964.

Em suas próprias palavras, perto de 200 pessoas foram entregues por ele. Gente com quem dividia o quarto, a mesa, visitava a família, beijava seus filhos e seus pais. A maioria dessas pessoas acabou morta sob torturas nos porões da Ditadura.

Uma de suas vítimas foi a própria Soledad Barrett, morta com outros 6 militantes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Até hoje não se sabe se o grupo foi morto numa emboscada assim que descobriram a verdadeira identidade do Cabo Anselmo e preparavam para detê-lo, ou se foram antes, presos e morreram sobre sádicas torturas.

Cabo Anselmo, com certeza, é uma das mais sinistras e maléficas figuras do grande pesadelo que foi a “guerra suja” no Brasil. Até hoje vive escondido, teme vingança, mas diz não ter nenhum remorso por qualquer coisa que tenha feito.

Transcrevemos abaixo texto do livro “Soledade no Recife” de Urariano Mota, publicado pela Boitempo escrito sob uma pesquisa histórica, documental, que fala do horror e da surpresa de Soledad, ao descobrir entre os policiais a cara do marido, o agente duplo a quem amava:

“A cara de Anselmo, no conjunto dos sinais, Soledad não via. Não tanto porque a desconfiança nunca lhe houvesse batido à percepção. Mas porque isso era tão horrível, que o seu senso estético repugnava. Uma coisa que o seu peito de justiça não queria nem podia aceitar. E recuava, no mesmo passo em que os indícios cresciam.

(...) A pergunta que Soledad não se fizera diante das imagens que a perseguiam nos últimos meses, por quê? qual a razão delas, agora à luz do dia em Boa Viagem, em uma butique da ensolarada praia de Boa Viagem, aonde ela foi para vender roupas, onde ela está com Pauline, ali, sob a prazenteira luz física do Brasil, a pergunta pelas razões dos sonhos e pesadelos que ela não se fizera, agora vêm com um susto, um terror, diante do real bruto. José Anselmo dos Santos se encontra entre os homens que lhe batem na cabeça com armas e punhos.

- Por quê? Por quê?

Pauline está muda e petrificada, incapaz de correr e falar. Soledad olha para os olhos do homem que pensara ser o seu companheiro, e isso, essa realidade, o pesadelo por guardar uma altura ética jamais mostrou. O pesadelo fora incapaz de exibir toda a crueza. Anselmo não sorri agora, sorrirá depois, quando lhe perguntarem

- Você dorme bem?

- Putz, tranquilamente.

Ou mais textualmente:
- Você dorme tranqüilo? Nunca sentiu pesadelo durante a noite? Não tem remorso pelo que fez?

- Absolutamente (risos)....

Por enquanto, não, agora na butique em Boa Viagem ele não ri, embora a cena lhe pareça um tanto cômica.

- Por quê? Por quê?

Ele apenas assiste ao espancamento e suplício. Como uma prova de que é contra esses terroristas.

‘Eu tomei conhecimento de que seis corpos se encontravam no necrotério... em um barril estava Soledad Barret Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto’.

Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sangüínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror’.

No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas. ‘Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela’. Distante dos manuais exatos da Medicina Legal, a advogada Mércia não se refere a cadáveres, mas a gente. Chama-a pelos nomes, Pauline, Jarbas, Eudaldo, Evaldo, Manuel, Soledad.

Recorda a situação vexatória em que estavam – porque eram homens e mulheres – despidos. O seu relato é como um flagrante desmontável, da morte para a vida. É como o instante de um filme, a que pudéssemos retroceder imagem por imagem, e com o retorno de cadáveres a pessoas, retornássemos à câmara de sofrimento. ‘A boca de Soledad estava entreaberta’ “.


Prof. Péricles

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