sábado, 23 de março de 2013

CONSELHOS DO CONSELHEIRO




Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo


Não tive uma infância pobre. Meu pai era comerciante e se não tínhamos luxo, ao menos, não vivíamos na miséria. Mas minha infância foi triste, pois perdi minha mãe, Maria Joaquina de Jesus, com apenas seis anos. Nunca superei essa perda.

Fui maltratado pela madrasta e até por meu pai em seus delírios de alcoolista, e por isso, construí um mundo só meu, onde me escondia para sobreviver a tanta amargura.

Para acelerar meu tempo nesse mundo só meu, estudei por conta própria português, geografia, francês e latim. Li de tudo, era um apaixonado por leitura, especialmente de lendas populares.

Lhe tenho amor, Lhe tenho horror. Lhe faço amor, Eu sou um ator

Aos 27 anos perdi também meu pai. Passei a cuidar da loja e cuidar de minhas três irmãs. Graças às minhas leituras e meu talento me tornei uma espécie de advogado sem diploma, que chamam de rábula. Dava aulas numa escolinha de fazenda, lá, depois do fim do mundo e ainda me tornei escrivão de cartório.

Diria, então, que estava com minha vida arrumada.

Nunca fui de muita sorte e tive o azar de casar com uma mulher que não me amava. Brasiliana Laurentina, minha prima de 15 anos, linda e deliciosa. Resultado? Numa noite sem estrelas ela fugiu com outro. Mais uma vez me senti sozinho e me escondi no mundo que criei pra mim.

Você sabe o que significava ser abandonado pela mulher numa cidade pequena do nordeste no final do século 19? Significava deboche, piadas, risadas escondidas, enfim, muita humilhação. Resolvi largar tudo, profissão que pagava bem, emprego que a mim sobrava. Tudo. Larguei e fui embora.

Eu quero dizer agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante

Passei a andar pelo mundo como alguém que nada mais espera da vida. Claro que queria encontrar aqueles dois, mas, felizmente, jamais os encontrei. Perambulei não só pelo Ceará como também por outros estados e, para sobreviver dei uma de pedreiro, ofício que aprendi de meu pai, para restaurar capelas, igrejas e cemitérios.

Passei a ler os Evangelhos com desespero e fervor. E, repassei esse fervor aos humildes, aos analfabetos. Os pobre passaram a confiar na minha palavra e a me pedir conselhos. Consolava como podia e meus conselhos tornaram-se a panacéia dos miseráveis.

Tornei-me conhecido por Antonio Conselheiro e a ter meus passos seguidos por essa gente desamparada.

É chato chegar a um objetivo num instante
Eu quero viver nessa metamorfose ambulante


Padres e fazendeiros me odiavam. Os padres pela perda de prestígio junto ao povo que me seguia. Os fazendeiros pela perda de mão de obra abundante e barata que, comigo, ia embora.

Brasiliana morreu e fui acusado de tê-la assassinado. Queriam se livrar de mim, mas no julgamento provei minha inocência e tiveram que me soltar e meu povo passou a me ver como mártir e um perseguido, como eles próprios sempre foram.

Dezessete anos depois de começar minhas andanças, em 1893, me estabeleci numa fazenda abandonada às margens do rio Vaza-Barris, numa remota região do sertão baiano, conhecida como Canudos. Ali, fundei um povoado, o” Belo Monte”. Rapidamente, o vilarejo se transformou numa cidade de aproximadamente 20 mil habitantes.

Vivíamos da agricultura familiar, não havia propriedade da terra os lucros da venda de nossos produtos eram por todos divididos igualmente. Não havia patrão ou senhor. A constituição de nosso mundo estava escrita nas nossas responsabilidades que eram iguais, para todos e nos Evangelhos dos humildes.

Era um mundo paralelo, um mundo alternativo à dura realidade do sertão. Uma sociedade alternativa.

Em 1887, o arcebispo, junto ao presidente da província, me acusou de pregar doutrinas subversivas. Fui acusado de louco e anarquista e, após a proclamação da república, de monarquista. A Igreja e o latifúndio se uniam para afastar aquilo que não entendiam e que temiam.

Mundo igualitário? Justiça social? Ausência de propriedade? Era demais pra eles.

Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo


Um dia, mandei arrancar das paredes e queimar, os editais que determinavam novas cobranças de impostos da gente do interior, que já não tinha mais como pagar e meus homens derrotaram os policiais que tentaram detê-los.

Depois disso, o sistema declarou guerra.

Entre outubro de 1896 e outubro de 1897 o governo do Presidente Prudente de Moraes enviou 4 expedições militares para nos matar. Vencemos as três primeiras, pois conhecíamos aquela região como a palma de nossa mão, mas fomos massacrados na quarta expedição cujo cerco a Canudos durou um mês e terminou no dia 5 de outubro de 1897.

Não houve prisioneiros, nem rendição. Perto de 25 mil pessoas, incluindo mulheres e crianças morreram. Segundo Euclides da Cunha, militar e escritor autor do livro “Os Sertões” sobre a Guerra de Canudos, um velho, um homem coxo e uma criança foram os últimos a tombar.

Antes disso, no início de setembro chamei meus ajudantes diretos e anunciei que iria morrer no final daquele mês. E, exatamente como previ me encontraram morto no leito no dia 22 de setembro de 1897. Tinha então, 67 anos.

Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio amanhã lhe tenho amor.


E como eu previ? Previ porque aprendi no meu mundo que morremos quando morrem nossos sonhos e que nossos sonhos morrem quando não são sonhados por todos. O sistema não nos deixa sonhar nos educando para um mundo de exploração e ganância, nos fazendo crer que essa é a única maneira de viver.

Aprendi que um outro mundo é possível sim, mas somente se abdicarmos do mundo que nos é imposto e jogarmos nos Vaza-barris da vida, todas as máscaras que nos fazem mal e que se deixarmos aderem ao nosso rosto e nossa alma.

Temos que acreditar que tudo é possível até o impossível como o sertão virar mar e o mar virar sertão.

Mesmo que isso doa, mesmo que a gente chore, mesmo que se magoe temos que perder o medo de trocar de planos, de mudar de idéia e de chorar por todos.

Mesmo que isso te transforme numa metamorfose ambulante.

Eu vou lhe desdizer aquilo tudo que eu lhe disse antes
Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante



Obs. Realmente o sertão virou mar com a construção entre 1951 e 1967 da Represa de Cocorobó que alagou toda a região de canudos, vista, atualmente somente em épocas de grandes secas.



Prof. Péricles

“Metamorfose ambulante”
Letra de Raul Seixas



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