terça-feira, 22 de outubro de 2013

O PASTOR E A FLOR


O vento curtia seu corpo franzino.

No deserto é acompanhado por milhares de fragmentos de areia que machucam a pele nua, como pequenos cacos de vidro.

Seu trabalho era estafante.

Cuidava das ovelhas, todos os dias, desde manhã quando as levava ao pasto, até a noite quando as fazia retornar ao cercado.

Apesar de uma família feliz, da esposa jovem e companheira e de filhos saudáveis, sentia-se infeliz pela rotina. Achava tudo monótono e que todos os dias eram o mesmo que apenas se repetia infindáveis vezes.

Um dia, enquanto abrigava-se sobre a sombra de um cedro, viu uma pequena flor branca que nunca havia antes reparado.

Arrancou uma de suas pétalas e a levou a boca.

Sentiu-se estranho. Sentiu-se embriagar, da forma mais forte que já sentira, mais até do que com o vinho que sorvia nas noites mais frias.

Colocou outra pétala e mais outra à boca.

Viu-se então num carrossel invisível.

Sem perceber passou a dançar sozinho no deserto sobre os olhares opacos de suas ovelhas.

E dançou e dançou e dançou, volvendo a areia num turbilhão ciclônico.

Ao despertar já era noite.

As cabras juntaram-se para se proteger do frio, outras haviam se desgarrado, enquanto ao longe o uivo dos lobos alertava para o perigo.

Com a boca seca e o coração batendo muito forte, empurrou em meio às trevas os animais que podia enxergar.

Foi o retorno mais longo e dolorido pra casa, onde a esposa aflita e os filhos em prantos o imaginavam morto.

Nos dias seguintes não contou a ninguém sua estranha experiência.

Continuou seu trabalho de pastoreio, mas nunca mais pode ficar sem aquelas estranhas pétalas e seus efeitos.

Dançava sozinho ao vento, mugia como animal cantava músicas sem rima, ria e fazia discurso às cabras.

Não percebeu quando o prazer deu lugar à loucura.

Por sua negligência seus animais foram se perdendo, devorados por predadores ou roubados pelos salteadores, até não restar mais nenhum.

Ele mesmo muitas vezes ficou nu após ser impiedosamente atacado e agredido por ladrões.

Misturava sangue às lágrimas e já não as mais distinguiam.

Sem as cabras, não havia porque retornar ao deserto, mas ele retornava todos os dias, apenas para provar o sabor das pétalas.

Logo a fome se abateu sobre o seu lar e sua esposa recolhendo seus filhos se foi embora, tratar da sobrevivência.

Ficou só e sem ninguém para retornar passou a dormir no deserto, encolhido entre os trapos que se tornaram suas roupas e alimentando-se apenas das pétalas que, se não lhe davam substância, lhe tiravam a fome.

Um dia, quando o vento do deserto lhe bateu mais forte na pele nua, se percebeu um velho prematuro, coberto de andrajos, com o olhar eternamente voltado para baixo, em busca das migalhas e tendo apenas o prazer efêmero da flor, e de seu prazer esdrúxulo.

Então o vento solitário do deserto fez uma curva e foi balançar as flores estranhas. A ventania se fez tornado e seu gemido dolorido se tornou rugido levando uma a uma todas as flores que ainda restavam.

Ele correu em círculos mas não pode pega-las.

Ao mesmo tempo se fez noite e uma lágrima silenciosa acompanhou distante o uivo derradeiro de um predador faminto. Só então ele percebeu que as flores brotaram de sua própria alma mesquinha e faminta de aventuras. Flores do jardim árido de sua alma preocupada apenas consigo e com seus desejos.

Ninguém é feliz sozinho, foram as derradeiras palavras que lhe chegaram aos ouvidos.

Foi numa noite distante, a última de seus devaneios que ele percebeu que, nenhuma flor verdadeira nasce de terra árida, regada pelo egoísmo, que não seja à flor da loucura.


Prof. Péricles
Texto psicografado de uma vítima das drogas

2 comentários:

Jairo disse...

E assim é o destino de todos que se entregam as drogas, mais dia menos dia a loucura os alcança!! Me emocionei lendo este texto que é a mais pura realidade!! Fui as lágrimas!!

Anônimo disse...

Mais um texto admirável, para quem já observou o mal que causam todas essas substâncias (inclusive o álcool-é droga). Uma pena a sociedade estimular tanto o consumo da bebida que abre portas para todas as outras ilícitas.
DROGA É DROGA.
Leonardo Curso Vigor