sábado, 14 de dezembro de 2013

APARTHEID À BRASILEIRA


A capacidade de escândalo é sempre maior quando este escândalo parece distante da própria casa.

A maioria se revolta profundamente quando aprende sobre as origens, as histórias, as ignomínias praticadas pelo apartheid na distante África do Sul.

“Como isso é possível? Que barbaridade!”

Poucos dos escandalizados percebem o apartheid aqui mesmo, no nosso país, na nossa própria realidade verde e amarela.

- Como assim? Aqui não há restrição na Lei que impeça igualdade racial!

Realmente, a segregação nunca esteve legalizada por alguma constituição brasileira. Mas também é verdade que também nunca foi proibida, ao menos, até a de 1988.

No Brasil a preparação para abolir a escravidão ocupou mais de 50 anos de nossa história, o que nos tornou a nação escravagista mais longeva.

Quando as elites perceberam que a abolição era inevitável partiram para a execução de um plano macabro: desenvolveram uma política de imigração, seduzindo a mão de obra estrangeira, especialmente alemães e italianos, para vir ao Brasil, ocupar postos de trabalho e espaço social que deveria ser de quem? Dos negros.

Nenhum plano de treinar, adaptar, assistir a população recém liberta e totalmente despreparada para a competição do mercado de trabalho. Terras? Apenas para os imigrantes (pelo menos até a Lei de Terras de 1850).

A idéia era tão simples quanto macabra: se os negros fossem isolados em bolsões de miséria, não tivessem acesso à terra, sem inclusão e sem possibilidade de acumular capital, o provável era que, com o tempo, ocorresse um branqueamento total da sociedade e o desaparecimento da população negra no país.

Não foi um extermínio planejado como a “solução final” do holocausto judeu. Mas um extermínio social, pensado a longo alcance. Não foram criados campos de concentração, mas criados guetos na distribuição geográfica da riqueza.

Nossas favelas, nosso sertão nordestino e outros tantos sertões são nossos sowetos.

Se tirarmos das girafas todas as folhas suculentas das árvores... Se colocarmos as girafas, por exemplo, no deserto, a tendência natural é o desaparecimento das girafas. Sem os meios naturais para a sobrevivência as espécies desaparecem. A seleção natural elimina espécies inferiores nos diferentes ecossistemas e a seleção social baseada na posse, no sucesso e no dinheiro eliminaria o elemento “inferior” negro cujo espaço seria ocupada pelo elemento branco “superior”.

Foi esse o pensamento diabólico que norteou as ações das elites brasileiras e seus capachos monarquistas do governo D. Pedro II.

Para essa gente o negro era algo que não podia ser esquecido, mas bem que se queria esquecer. No início do século XX o negro é quase um estrangeiro no seu próprio país. O futebol era vedado aos negros. O samba era marginal. Os cultos afro-brasileiros era pecaminosos e demoníacos. A felicidade do negro incomodava.

O negro sobreviveu, felizmente, como todos nós sabemos, mas, ao longo do tempo ocorreu um fenômeno interessante: a negritude, um conceito de raça, se ampliou incluindo o miserável, um conceito social, brancos e pardos e outras cores.

Todos os governos brasileiros trabalharam para as elites e pelas elites e todo questionamento às diferenças tratadas como caso de polícia.

Na República Velha dos coronéis dê-lhe porrada no pobre, no negro e melhor ainda, no negro pobre.

A Era Vargas interpretou o papel de popular criando Leis populista como a CLT, e órgão tipo Ministério do Trabalho e Ministério da Saúde, por exemplo, mas atrelou os sindicatos aos seus interesses e amordaçou qualquer organização do trabalhador que não fosse aliada. Reformas, talvez, revoluções jamais.

Juscelino e Jânio nunca falaram seriamente sobre as necessidades dos miseráveis, embora Jânio adorasse interpretar esse papel e Juscelino conhecesse melhor o pobre norte-americano do que o brasileiro.

João Goulart foi uma ameaça inesperada a esse tipo de visão, pois suas reformas de base propunham mudanças mais consistentes, mas você sabe o que aconteceu com Jango, não é?

A Ditadura Militar por sua vez, criou um mito, o mito do pobre feliz que habita um gigante adormecido que, agora sim, vai ser grande e poderoso. Entretanto, por baixo do mito permitiu que a distância entre os que têm e os que não têm se tornasse imensurável.

O casamento de negros e brancos nunca foi proibido pela Lei brasileira, mas o sínico racismo nacional simplesmente não leva a sério esse tipo de união e quando leva é para benzer-se e pedir a Deus que esse tipo de desgraça nunca aconteça em sua família.

O direito de ir e vir no Brasil sempre existiu na lei, mas nunca na prática, a não ser que você considere o ir e vir do trabalho para casa. Você já viu pobre curtindo um turismo dentro do Brasil, conhecendo os Lençóis Maranhenses ou as delícias de Angra? O direito de ir e vir é uma ilusão que a classe média adora acreditar, nem que seja de excursão, uma vez na vida.

Não existem lugares proibidos à entrada dos negros/pobres no Brasil. Não pela Lei, mas pelo dinheiro sim.

Recentemente a classe média branca-conservadora-racista do Brasil resmungou profundamente por ver negros andando de avião. “Igualdade sim, mas precisavam andar de avião?”

Nos seus piores pesadelos, pobre tem carro e Plano de Saúde privado. “Só falta colocarem seus filhos na escola dos meus meninos”.

“Cotas? Por que se nosso país nunca houve racismo?”

No Brasil, todos são mais ou menos iguais perante a lei.

Nosso apartheid é um apartheid silencioso. Alguns Mandelas já foram criados em nossa história, mas, ao contrário do grande herói do povo sul-africano, não foram reconhecidos.

Zumbi dos Palmares, Sepé Tiarajú, Cipriano Barata, Antônio de Sousa Neto, João Cândido e tantos outros.

Não, nosso racismo não está Lei e, portanto, não provoca escândalos como o regime segregacionista de Peter Botha.

Mas está nas ruas, no dia a dia, nas mágoas que se tornaram anedotas para serem mais suportáveis.

Está nas marcas que o corpo e a história guardam.



Prof. Péricles




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