domingo, 24 de agosto de 2014

ABDELMASSIH E MENGELE




Por Alex Antunes



Claro que o ex-médico Roger Abdelmassih é um monstro. Atacava mulheres sob seus cuidados ou chefia, sedadas ou não. Sua pena é de 278 anos de prisão, por cerca de 50 estupros (foram 90 acusações, várias prescritas ou consideradas carentes de provas). A pena traduz esse inconformismo da sociedade com “um homem que abusava de mulheres que deveria proteger”, ou que “abusava delas em seu momento de maior fragilidade”. Fato.

Acontece que o doutor, capturado nesta terça-feira em Assunção, no Paraguai, onde havia se instalado numa mansão num bairro fino (o mesmo do presidente), não é apenas um estuprador vulgar. Ele era também um médico de grande renome e sucesso, inclusive midiático. Chamava a si mesmo de “Dr. Vida”, em função do alto percentual de casos bem-sucedidos em sua clínica de reprodução assistida.

Sua notoriedade começou quando atendeu o “rei” Pelé e a então esposa, Assíria, que conseguiu engravidar de gêmeos. Seguiu-se uma lista de celebridades, incluindo as mulheres de Fernando Collor, Tom Cavalcante, Renan Calheiros e Gugu Liberato (Fátima Bernardes faz questão de negar que tenha sido atendida por ele). A caríssima clínica de Abdelmassih tinha um alto percentual de casos bem-sucedidos, por volta de 50%, contra a média usual dos 30% de referência internacional. Ele dizia que era por causa do alto investimento em pesquisas.

Hoje sabe-se que o Dr. Roger também estuprava a ética médica. À revelia das pacientes, usava óvulos ou espermatozóides não necessariamente colhidos dos casais que atendia, e inseminava óvulos em quantidade superior ao indicado, para melhorar a margem de sucesso. Fraudes e erros médicos eram o combustível real da sua taxa de acerto.

Dr. Roger está em boa companhia. Nos anos 1980, o médico american Cecil Jacobson também alucinava em sua clínica de reprodução humana: usou seu próprio esperma em fecundações, produzindo possíveis 75 filhos seus em clientes desavisadas. Não se sabe se o Dr. Abdelmassih usou seu próprio sêmen. O médico mais famoso do 3º Reich, Josef Mengele, que fugiu para a América do Sul e morreu incógnito, em 1979, em Bertioga, no Brasil, por afogamento, é outro que juntava medicina e fetiches pessoais.

Entre 1943 e 1944, no campo de concentração de Auschwitz, o "Anjo da Morte" torturou e mutilou prisioneiros em seus “experimentos científicos”, entre os quais se incluiam afogamentos, injeções nos olhos e até a tentativa de criar gêmeos siameses artificiais, juntando dois irmãos. Mengele ia ainda um pouco mais longe da casinha, com um empurrão conivente do nazismo. Mas, como Jacobson e o Dr. Roger, Mengele não tinha cara de maluco.

Tinha, isso sim, a mesma arrogância de praticamente toda a medicina branca e ocidental diante de seus pacientes – particularmente quando esses pacientes são mulheres. Saltam à vista casos recentes como o de Adelir Carmen Lemos de Góes, obrigada por decisão judicial e força policial a fazer uma cesariana indesejada em Torres (RS), e de uma paciente de Natal (RN), ridicularizada nas redes sociais por seu obstetra após discordâncias na condução do parto.

Com os seus respectivos graus de perversão, o tal obstetra de Natal, chamado Iaperi Araújo, mais Jacobson, Abdelmassih e Mengele são exemplares de um mesmo tipo de postura. A suposta autoridade da (assim chamada) ciência sobre a intuição. Do deslumbramento fetichista tecnológico sobre a magia natural. O jaleco faz o tarado.
Na ficção, as fantasias de Mengele ganharam uma dimensão mais megalomaníaca. No livro de Ira Levin, depois adaptado para o cinema, chamado Os Meninos do Brasil, o médico-carrasco alemão combina seu gosto real por gêmeos com a especialidade em fertilização, antecipando Jacobson e Abdelmassih. Ele cria clones de Hitler em casais que buscam a gravidez assistida.

Gregory Peck como Mengele em Meninos do BrasilMeu filho nasceu em casa, sob a orientação de uma parteira (ex-enfermeira obstétrica) e de uma xamã. Minha ex-mulher, que tinha um parto anterior em hospital, não tem a menor dúvida de que é melhor escolher seu canto para parir como uma gata, o mais confortável possível, se hidratando com pedaços de melancia, do que de pernas para cima, contra a lei da gravidade, em sofrimento, em jejum e sob a agressividade das luzes e do escrutínio dos médicos. Parir é saúde, não doença. E a cura de doenças, por sua vez, não é glamour. É saúde, psíquica inclusive.

No aniversário de 30 anos da primeira fertilização in vitro do mundo, em 2007, conforme o relatado no blog de Laura Capriglione, Abdelmassih fez uma festa opulenta, a Festa da Fertilidade, com a presença não só de vários de seus clientes famosos, como também de Luciana Gimenez e Hebe Camargo, que carregava animadamente um bebê de brinquedo como se fosse real. Mais um espetáculo midiático, mais uma exibição do “poder”, mais fetiche.

No entanto, nas rodas médicas, os abusos de Abdelmassih eram comentados há anos, e nada se fazia. Só com a explosão pública do escândalo a entidade de classe se mexeu para cassar seu registro. Ele era um “poderoso”, e amigo dos “poderosos”. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, mandou soltá-lo, para que ele respondesse o processo em liberdade – e ele fugiu para o exterior, desaparecendo por quase quatro anos.

Se entre Mengele e Abdelmassih é a mesma postura, só com diferenças de grau, fantasia e oportunidade, assim também é entre o nazismo e o mundo dos “famosos”. Onde Abdelmassih fez sua fama, criando os verdadeiros “meninos do Brasil”.

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