sábado, 23 de julho de 2016

ESCOLA SEM PARTIDO, DIREITA SEM VERGONHA


A primeira vez que frequentei uma sala de aula, era muito jovem, e ainda estava na faculdade. Estava eu no meio de professores mais velhos e experientes, encolhido num canto, nervoso diante dos minutos que antecediam minha primeira aula.

De repente um professor, que vim a me relacionar muito bem mais tarde, se aproxima de mim e me fala quase aos cochichos: vai embora guri, te manda antes que seja tarde.

Lógico que me assustei com aquilo, mas, o colega continuou: se realmente der a primeira aula, vais te apaixonar, vai querer que a segunda seja melhor que a primeira e nunca mais vai deixar de ser professor e mal pago. Te manda, vai fazer outra coisa e ganhar dinheiro.

Não ouvi seu bem-humorado conselho (sim, ele estava brincando) e dei a primeira aula, dei a segunda e estou lecionando até hoje, trinta anos depois.

De certa forma, ele tinha razão. Lecionar sobre a história da humanidade é viver uma paixão de tal forma que ela só cresce e um professor de história será sempre um professor de história.

Por mais conhecimento que tenha o professor, se não tiver paixão, jamais será um bom professor.

Como falar sobre o homem, sua produção, suas escolhas e suas heranças sem paixão?

Como relatar a história de povos que foram ricos em descobertas e conhecimentos, mas que já desapareceram, sem um toque de saudade e mistério?

De que forma podemos falar da arte humana de reproduzir a realidade em que vive sem imaginar os dedos do artista, seus pensamentos e receios diante da obra?

Impossível viajar pela mitologia dos povos sem imaginar sua personalidade, seus sonhos, esperanças e decepções sem sentir um pouco da emoção que sonhos esperanças e decepções emanam.

Seria possível falar da contradição de um animal que progrediu tanto ´tecnologicamente que já faz transplantes, mapeia genomas, viaja no cosmos e cria máquinas maravilhosas como o computador, mas que, jamais conseguiu criar uma sociedade minimamente justa, sem um misto de indignação e deslumbramento?

Somos sim inteligentes e temos consciência de nossa existência. Fazemos milagres com nossa imaginação e trabalho, mas, ainda permitimos que crianças morram de fome, velhos morram abandonados e a violência ainda dite as normas em vários pontos do planeta.

Falamos de coisas antigas, mas que estão tão presentes hoje como ontem como fanatismo religioso, homofobia, fascismo, guerras e outras degradações humanas.

Como falar da história do Brasil sem nos emocionarmos com as mesquinharias das elites que mantiveram a escravidão ao ponto da exaustão num mundo que não mais admitia o trabalho escravo?

Daria para falar do holocausto judeu sem lembrar o maior de todos os holocaustos praticados contra as populações indígenas das Américas?

Ou do egoísmo da República Velha e seus coronéis donos do poder e das Leis?

Poderíamos permitir a crítica ao totalitarismo europeu sem lembrar da comédia dos integralistas brasileiros apaixonados por Hitler e Mussolini?

Não, não peçam a um professor de história que ele dê aula sem partido, pois todo relato histórico já exige em sua essência que se tome um partido.

Um professor não é um narrador, uma leitura mecânica sem alteração no timbre de voz.

O que nos move não é o salário, é o brilho de indignação e curiosidade nos olhos de nossos alunos. É provocar a inquietação e a vontade de saber mais.

Por isso, meu colega tinha razão, os salários são baixos, mas não perdemos a vontade de continuar lecionando já que cada inquietação que provocamos é uma nova esperança em dias melhores.

Não queiram nos tirar a indignação que as vezes nos levam às lágrimas como nos relatos de perseguidos e torturados por ditaduras criminosas.

A neutralidade não foi feita para poetas nem para contadores de história.

Melhor seria uma mídia sem partido, mas a simples menção da ideia provoca clamores de interferência na liberdade de informação. Mas, o que o professor de história faz também não é direito de liberdade de informação?

Melhor seria judiciário sem partido, polícia federal sem partido, ministério público sem partido.

A interpretação e aplicação da Lei sim, exigem imparcialidade, neutralidade e, se possível, ausência de emoção.

O pedido de uma escola sem partido vem da direita, pois, reclamam, os professores são majoritariamente de esquerda.

Então seria de se questionar, se aqueles que estudam história com método e com afinco em sua imensa maioria são de esquerda, não estaria a verdade dos fatos com essa maneira de ver as coisas.

Por que são tão poucos professores de história de direita?

Então, pensam os deputados direitistas, das bancadas do boi, da Bala e da Bíblia, se não é possível mudar a história que se mude o jeito de conta-la.

O que se pretende fazer com a Lei da Escola sem Partido é o mais sórdido fascismo.

Nós, professores de história, somos percentualmente poucos para definir qualquer resultado de consulta popular. Dependemos da vontade e da luta da população brasileira. Dependemos que pais e cidadãos não aceitem que seus filhos recebam aulas de uma história morta e mentirosa.

Uma vez perguntaram a Heródoto, o primeiro historiador com método e por isso conhecido como “o pai da história” por que ele dedicava tanto tempo viajando aos locais de batalhas para apenas registra-las se as batalhas já tinham ocorrido a muito tempo e ele não poderia modifica-las. Heródoto suspirou e respondeu “para fazer justiça”.

A história contada pelos vencedores, nem sempre é a história real e cabe ao historiador, com o fôlego que só o tempo pode dar, fazer justiça também aos derrotados.

Uma escola sem partido terá partido sim, o partido dos vencedores.

Não tirem as estrelas dos poetas, nem a emoção dos historiadores.



Prof. Péricles











Um comentário:

Carlos - Professor de Geografia disse...

falei que você é um poeta que se manifesta em prosa.