sexta-feira, 8 de julho de 2016

INSTANTÂNEO BRASILEIRO


Por Maria Lúcia Dahl

Ontem a noite passei por um casal na rua, cuja mulher estava grávida, estendendo uns papelões no chão como se fossem lençóis em cima de um colchão e se deitaram, ambos, em cima deles, perto de uma moça, um pouco mais longe e bem jovem, deitada na calçada pura, sem nem sequer um papelão de caixa, solta na rua e encolhida como um bicho assustado, provavelmente pensando nos estupradores, que apavorantemente, se tornam cada vez mais numerosos.


A mulher grávida me disse que o casal não tinha comido nada aquele dia e que ela estava passando mal. Os dois me conheciam da TV e me pediram comida.


Fui até em casa e peguei tudo o que tinha na geladeira, que era pouco, pois costumo comer na rua, peguei tudo, esquentei e levei pra eles, e depois da grávida ter devorado a comida, o seu companheiro perguntou se eu poderia comprar um pouquinho de macarrão pra eles.


Fui até o super- mercado, comprei o que eles queriam, olhei pra eles e pra garota que continuava lá perto, dormindo, encolhida.


Chocada com o tipo de vida que as pessoas ainda levam, desde a minha infância, quando o número de mendigos eram os mesmos, ou talvez até menor do que agora que a população não para de crescer no mundo, transformando as ruas em dormitórios e banheiros onde pode-se tudo: estuprar, matar, roubar ou o que lhe apetecer na hora, enquanto os transeuntes pulam por cima deles, abrindo caminho como se nada houvesse.


Fiquei em estado de choque, olhando aquele acontecimento que já se tornou corriqueiro para alguns mas intensamente chocante pra mim.


De manhã passei pelo lugar onde eles teriam dormido, se alguém consegue dormir com a cabeça nas pedras portuguesas e sob o frio que ainda por cima se manifestou.


Nessa hora, a população era de crianças pobres, rindo, felizes das musiquinhas que cantavam, provavelmente inventadas por elas e cheias de palavrões que incluíam nas melodias e os faziam gargalhar.


Lembrei-me mais uma vez da minha infância, quando uma vez cantei junto com a minha irmã e minha prima, um samba que estava na moda e sé chamava: “Na Pavuna”.


Cantávamos e dançávamos, felizes, batucando: “Na Pavuna, Tum, Tum, Tum” Na Pavuna, Tum, Tum Tum!” quando vovó nos deu uma bronca, indignada, gesticulando e nos apavorando, quando minha irmã perguntou o que é que cantar aquela música tinha de mal, ao que vovó respondeu que meninas como a gente não podiam dizer palavrão. Minha irmã perguntou que palavrão ela ouvira naquela música inocente e vovó respondeu, furiosa:


-Tapa a bunda, Tum, Tum, Tum! Tapa a bunda! E bunda não é palavrão?


Tivemos todas nós, crianças, um acesso de riso explicando a vovó que era “Na Pavuna” e não tapa a bunda, como ela tinha entendido. Vovó ficou sem graça e se retirou do jardim onde brincávamos.


Tempos inocentes aqueles onde não se podia nem falar bunda, enquanto hoje se estupra quem estiver por perto e à vontade, enquanto os políticos roubam a comida, as casas, as escolas e os hospitais da população que os substituem por ruas onde os doentes, crianças, adolescentes e grávidas tentam se abrigar enquanto a turma de cima deposita seu rico dinheirinho nos países chiques.



Maria Lúcia Dahl , atriz, escritora e roteirista. Participou de mais de 50 filmes 29 peças teatrais. Na televisão trabalhou em cerca de 29 novelas entre as quais – Dancing Days – Anos Dourados – Gabriela e recentemente em – Aquele Beijo. Como cronista escreveu durante 26 anos no Jornal do Brasil e algum tempo no Estado de São Paulo.





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