quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O BRASIL É CATÓLICO?


Por Itamar Melo


Pedro Álvares Cabral ordenou que se erguesse um altar na praia da Coroa Vermelha, convocou seus capitães a passar das caravelas para batéis e desembarcou na faixa de areia. Era um domingo, dia do Senhor. Sob a bandeira de Cristo, cercado pela exuberante vegetação tropical, o frade franciscano Henrique Soares de Coimbra pregou o Evangelho, falou da cruz e da nova terra na qual ela acabara de chegar e entoou missa – a primeira celebrada nesta parte do mundo. Era 26 de abril de 1500. O Brasil nascia ali, sob a égide da Igreja Católica.

Durante a maior parte dos cinco séculos seguintes, o país e a religião permaneceriam indissociáveis. Como a licença papal concedida aos portugueses para explorar o Novo Mundo estava condicionada à expansão da fé, colonização e evangelização confundiam-se. Com o conquistador, vinha o padre.

O amálgama entre Brasil e catolicismo foi tal que, até a proclamação da República, em 1889, Estado e Igreja mantiveram-se fundidos no regime conhecido como padroado.

O país se fez ao redor de igrejas construídas na praça central de cada cidade ou vilarejo, aprendeu as primeiras letras em escolas geridas por padres e freiras, formou seu imaginário escutando as histórias dos personagens do Antigo e do Novo Testamento, construiu toda uma cultura baseada no alicerce dos valores católicos.

Em 1940, meio século após a separação entre Igreja e Estado, 95% dos brasileiros se declaravam seguidores do Papa.

Agora, passados 516 anos do primeiro domingo de missa, esse país não existe mais. A maior nação católica do mundo já não é tão católica assim. 

Pela primeira vez na história, talvez já nem se possa mais dizer que o Brasil é um país católico. Essa é uma transformação significativa, que vem se anunciando nas estatísticas há mais de 40 anos. Durante esse período, a proporção de membros da Igreja na população despenca cerca de 10 pontos percentuais a cada década.

Em 1980, eles ainda eram 89%. Passaram rapidamente a 83,3% (1991), 73,6% (2000) e 64,6% (2010). O próximo Censo ocorre apenas daqui a quatro anos, mas especialistas acreditam que ele vai flagrar a continuidade dessa tendência – a dúvida é apenas quanto ao tamanho do tombo.

Algumas pesquisas recentes sugerem que pode ser robusto e que a maioria católica possa estar ameaçada. O Datafolha, que mede a religiosidade do brasileiro desde 1994, detectou apenas 57% de católicos em 2013 – no levantamento anterior, em 2010, o índice foi de 63%, quase igual ao do Censo.

Na avaliação do Pew Research Center, uma instituição norte-americana, o declínio se confirma, mas em ritmo menos alucinante: em 2014, 81% dos brasileiros diziam ter sido criados como católicos, mas só 61% afirmavam ser católicos.

As pesquisas que chamam mais atenção e que permitem prever um Brasil não-católico são aquelas centradas nas faixas etárias mais baixas – grupos que serão os brasileiros de amanhã e sob cuja orientação vai ser moldada a religiosidade das próximas gerações. 

Para a maior parte desses jovens, a igreja apostólica romana dos seus pais e avós significa pouco. Levantamento feito três anos atrás pelo Instituto Data Popular apontou que só 44% dos brasileiros de 16 a 24 anos definiam-se como católicos.

Em alguns estratos, há indícios de que os crentes sejam ainda mais minoritários. 

Em 2015, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) realizou uma pesquisa, em todas as unidades da federação, com pessoas de 18 a 34 anos. A amostra não refletia o perfil exato do brasileiro, privilegiando pessoas de classes B e C e com instrução acima da média. Mesmo com esse reparo, o dado espanta: só 34,3% disseram seguir o catolicismo.

O bispo auxiliar de Porto Alegre Leomar Antônio Brustolin, que coordena a pós-graduação em Teologia da PUCRS, reconhece: o Brasil já não pode mais ser definido como um país católico. Ele avalia o encolhimento do rebanho como parte de algo mais amplo, um enfraquecimento dos valores cristãos.

Na arquidiocese de Porto Alegre, onde Brustolin atua, dados sobre a administração dos sacramentos oferecem um vislumbre da "descatolização" em curso. Segundo a edição de 2015 do guia do arcebispado, a quantidade de batizados, primeiras comunhões, crismas e casamentos nos 29 municípios da jurisdição é pouco expressiva e, além disso, recuou de forma acelerada.

Em 2008, foram batizadas 26,8 mil crianças. Mas o número diminui ano após ano, até chegar à marca dos 20,8 mil em 2013.

Até uma ou duas gerações atrás, ser brasileiro significava, em larga medida, crescer em um lar decorado com imagens de Cristo e dos santos, ter uma avó ou tia devota que exigia a presença semanal na missa, absorver uma série de costumes, superstições e narrativas de origem católica e ter nos sacramentos uma espécie de formação obrigatória.

O fenômeno mencionado por Chiarello é algo já documentado em uma série de pesquisas. Elas mostram que a quantidade minguante de brasileiros que se define como católica expressa opiniões e crenças frontalmente contrárias à doutrina. 

Em 2011, como parte de seu mestrado em Teologia, Edson Frizzo entrevistou 1.104 alunos de Humanismo e Cultura Religiosa, disciplina obrigatória nos cursos de graduação da PUCRS. A maior fatia (61,2%) definia-se como católica, mas a crença era de fachada.

Apenas 19,2% acreditavam na ressurreição, menos do que os crentes na encarnação (44%). No que dizia respeito a valores, revelou-se um festival de anticatolicismo: os estudantes eram a favor do divórcio (90,9%), da eutanásia (64,1%), do aborto (56,6%), da pena de morte (50,7%), do controle artificial de natalidade (72%), do sexo antes do casamento (92,9%) e da união homossexual (52,5%).

O segmento evangélico foi o que mais cresceu no país no passado recente. Em 1991, abrangia 9% da população. Em 2010, 22,2%.

A maior parte desses adeptos saiu das hostes papistas. Segundo dados do Pew Research Center, 54% dos protestantes brasileiros foram originalmente criados como católicos.

A transformação cultural também abriu caminho para a expansão dos que se declaram ateus – um tipo de posicionamento que até pouco tempo atrás era tabu no Brasil. 

Em 2008, o engenheiro civil Daniel Sottomaior, curitibano radicado em São Paulo, descobriu comunidades de ateus na internet e fundou a Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que combate a discriminação e o preconceito contra quem não tem fé.

No final de 2010, a agremiação tinha 1,7 mil sócios. Passados pouco mais de cinco anos, tem 10 vezes mais: 17,4 mil. O Rio Grande do Sul se destaca. Apesar de responder por 5,5% da população brasileira, abriga 8,4% dos filiados à Atea.

A página da entidade no Facebook acumula 485 mil fãs.




Itamar Melo é jornalista de Porto Alegre/RS

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