quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

OS DEUSES AINDA VIVEM


A mitologia não é uma coleção de obras ficcionais, por mais bela que pareça.

A mitologia fala do próprio homem, enquanto espécie capaz de refletir sobre si mesmo e sobre o mundo que o cerca.

Quando os gregos narravam as aventuras de seus deuses e heróis, interpretavam ao próprio homem, sua história, seus medos, afetos, características.

Quem de nós não tem um pouco dos ciúmes de Hera? Ou dos desejos de Afrodite e mesmo, da ambição pelo poder de Zeus?

Quem de nós já não pretendeu entender a aparente insignificância da vida e o que vem depois da morte? Ou por que o amor sorri para alguns mas nega seu sorriso para outros?

Os deuses gregos, seus heróis, semideuses, ninfas, sereias e criaturas imaginárias de mil cabeças, mil amores, nada mais são do que a própria representação do homem, seus medos e esperanças.

Por isso, passada a perplexidade do primeiro contato e o riso irônico dos mais apressados, a mitologia clássica nos traz uma profunda admiração por sua forma de entender o mundo numa época em que a tecnologia apenas engatinhava no uso da metalurgia, a comunicação se dava na velocidade dos passos e o comércio não ia além dos espaços mais próximos.

Para os gregos o homem era a síntese do que havia de mais extraordinário e brilhante. O homem é deus pois os deuses são homens, em suas qualidades e defeitos.

Na dinâmica histórica, a mitologia clássica foi substituída por outras mitologias.

Só que, enquanto a mitologia clássica buscava entender a humanidade e sua essência principalmente em seus desejos de liberdade e de expressão, as demais mitologias que vieram substitui-la buscaram dominar esses desejos e justificar essa dominação e o predomínio de alguns homens sobre os demais homens, não na relação do merecimento pela bravura, mas, pela dominação econômica a partir da hegemonia dos privilegiados sobre as massas.

A mitologia judaico-cristã trouxe o mito do pecado, consequentemente do castigo (o inferno) e da eleição aos céus daqueles que fossem mais obedientes a um Deus único, que na verdade só era compreendido pela classe sacerdotal (a Igreja) e que, maleável nos Concílios que criaram o cristianismo e elegeu evangelhos aboliu a rebeldia privilegiando a vontade dos poderosos.

Um homem criativo, livre e capaz representado na mitologia clássica foi rotulado de pecador e restrito à mitologia pagã, execrada e destruída pelos novos mitos do Papa e sua hierarquia de bispos e anjos, e de um governo aliado a ela.

Já a mitologia da Revolução industrial, manteve o mito do homem perverso e danado que deve ser salvo pela obediência, e acrescentou o mito do trabalho como única forma de dignificar sua caminhada até o céu e a aceitação da miséria da maioria e da propriedade privada de alguns como qualidades inerentes aos eleitos.

A flauta de Pã foi substituída pelo apito da fábrica e a arte natural do ser humano transformada em mais uma mercadoria a ser embalada e vendida conforme são todos os outros valores também transformados em mercadoria.

Nesse sentido vivenciamos tempos de sub-mitologias em que, muito mais do que criações temos substituições. Tempos em que, por exemplo, o Oráculo de Delfos foi substituído pelas verdades televisivas, incontestáveis a um grande número de pessoas que repassaram à mídia o exercício tão estimulado pelos gregos de... pensar.

A mitologia moderna supervaloriza o poder tecnológico e da rapidez da informação, a competitividade entre os seres e o mito do homem realizado a partir das aquisições materiais que provém seu conforto e seu supérfluo.

É o mito do homem bem-sucedido e vitorioso, num mundo tão fictício como o dos titãs, em que todos teriam as mesmas condições de serem bem-sucedidos e vitoriosos, bastando para isso o talento do trabalho.

Porém, apesar dessas “virtudes” predominarem no imaginário do homem moderno, os valores preconizados pela mitologia clássica não foram totalmente destruídos, ao contrário, persistem vivendo em algum lugar da sua psique.

Paulatinamente o homem moderno foi descobrindo que a mitologia do consumo não o faz mais feliz, nem mais livre ou sonhador. A mitologia do consumo, na verdade, o faz mais obeso, deprimido, solitário e mentiroso para consigo mesmo.

O homem moderno sonha em se dar bem, mas algo nele ainda sonha em ser feliz e suspeita que a felicidade e se dar bem não sejam exatamente a mesma coisa e a mitologia clássica, sua ninfas, deuses e heróis ainda pulsa em algum lugar de sua alma.

Assim é que, apesar do desamor dos mitos atuais e da entrega de seu destino ao poder do supérfluo ainda existe dentro de cada um o desejo de ser livre, de ser criativo e de criar a própria arte, como um sopro da flauta de Pã.

Talvez fosse esse o destino histórico das ideias socializantes do marxismo e humanizantes do anarquismo, que se apresentaram como oposição ao individualismo do capital, mas foram abortadas pelo poder tacanho da cobiça humana de déspotas como Stalin, Hitler e presidentes Iankes.

Mas Zeus, Dionísio, Afrodite e todos os deuses e criaturas mitológicas ainda estão lá, dentro de cada um de nós, pois eles não morrem, simplesmente porque os mitos somos nós.

E isso, talvez seja apenas o que nos reste de esperança num mundo melhor e num homem verdadeiramente feliz, numa sociedade mais justa.

Em algum lugar do nosso tempo, que não se mede nas horas, Afrodite ainda seduz, Apolo fascina, Dionísio embriaga e Posseidon repousa seu olhar sobre a imensidão dos oceanos.


Prof. Péricles